Quando examinamos as Escrituras como se estivéssemos contemplando um rosto, e não apenas vendo-o, Kierkegaard nos diz que percebemos que elas são, efetivamente, "uma carta de amor". Ele insiste que é só quando as lemos como palavras de amor, com todas as qualidades pessoais que trazem vida e que distinguem os seres humanos - criados à imagem de Deus -, que podemos estar a sós com o texto e sermos por ele confrontados. Essa é a abordagem que Irineu primeiro chamou de "Regra de Fé" para leitura da Bíblia com entendimento e obediência. Com isso, ele queria dizer que precisamos interpretar a Bíblia como uma história - a história do amor de Deus -, que tem um agente central, o Deus trino da graça. As Escrituras têm de ser interpretadas nesse contexto do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No início, os israelitas presumiram que se tratava de sua história de amor,
"O Caminho de Israel". Mas, assim que conseguirmos enxergar Cristo em todas as Escrituras, como fez Martinho Lutero em sua releitura da Bíblia, então somente a presença do Espírito Santo, à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, pode gerar uma transformação tão profunda da consciência.
O pensamento bíblico contrasta, portanto, com o pensamento desconstrutivista que vem sendo defendido na pós-modernidade. Se somos nós que determinamos "o que faz sentido" no texto, então só enxergaremos aquilo que queremos, e nossa visão será idólatra. O leitor da Bíblia não poderá responder à sua natureza icônica, que aponta para além de nossa própria ideologia. Como disse tão bem Stephen Moore, "Hoje em dia, não são nossos textos bíblicos que precisam de desmistificação, e sim nossa maneira de lê-los". A Regra de Fé consiste em "ouvir o Deus que fala". Isso exige uma ação comunicativa, pois somos exortados a "sermos não apenas ouvintes da Palavra, mas também praticantes". O propósito da leitura da Bíblia é o de nos guiar na busca da piedade, e não apenas o de nos municiar com mais informação que venha a reforçar nossa própria visão do mundo ou status quo idólatra. Damos a essa leitura o nome de "teológica" ou querigmática, feita dentro da profissão de fé, conforme expresso pelos autores bíblicos. Ela nos chega como uma proclamação real, que suscita a reação de súditos leais. Muitos estudiosos bíblicos do tempo de Kierkegaard e também dos nossos dias tentaram "explicar" a Bíblia, em vez de "escutar" e obedecer. Kierkegaard argumentaria que tal escolasticismo leva, na prática, ao silenciamento das ordens contidas na Palavra de Deus.
A gramática da leitura bíblica, isto é, o viver segundo a Regra da Fé, interpreta todas as coisas à luz do amor de Deus. Ser uma pessoa humana é, em si mesmo, uma dádiva do amor de Deus que nos capacita a comunicarmos esse amor. É por isso que os indivíduos que vivem “em pecado” autonomamente e sem fé, não podem ser “pessoas-da-Palavra” ou “pessoas da Torá”, como descreve o Salmo 119. O leitor “fiel” é aquele que precisa de uma fé básica em Deus, para “deleitar-se” na Palavra de Deus “de dia e de noite”. Para quem quiser ser esse tipo de “leitor”, Kierkegaard faz diversas recomendações:
- Em primeiro lugar, “fique a sós com a Palavra de Deus”, isto é, não permita que comentários interfiram na leitura do texto em si.
- Em segundo lugar, crie um ambiente de silêncio para a Palavra de Deus. Se não o fizermos, nos esqueceremos de que se trata da Palavra de Deus ou então nos veremos incapacitados de ouvi-la por causa dos “ruídos” de nossas próprias inclinações culturais.
- Em terceiro lugar, considere a Bíblia como o espelho em que vemos e respondemos àquilo que vemos de nós mesmos enquanto pecadores.
- Em quarto lugar, essa leitura deve nos levar a um profundo sentimento de convicção e de arrependimento pessoal e a uma atitude de contrição e humildade na leitura da mensagem de Deus para nós, permitindo sua internalização de forma pessoal.
- Em quinto lugar, faça uma leitura responsiva, para obedecê-la e “praticar a verdade”.
- Em sexto lugar, reconheça que a comunicação bíblica se faz por vias indiretas: o próprio Jesus falou em parábolas. Desse modo, a narrativa bíblica nos atrairá para dentro da própria história, para que participemos dela e nos apropriemos de sua mensagem. A verdade não pode ser imposta, só pode ser internalizada de forma pessoal.
Por fim, leia a Palavra com esperança, crendo que “todas as coisas” são possíveis para Deus, para que possamos estar “abertos” para a “novidade” de Deus. É assim que Kierkegaard gostaria que “abríssemos” e “lêssemos” a Bíblia, para podermos ser por ela existencialmente discipulados. A mentoria em si é existencial. Sua postura e sua intenção não é apenas a de acrescentar informações. O próprio Cristo é “o verdadeiro leitor” das Escrituras. A Bíblia é a história de Deus e tem um agente central, o Deus trino. Precisa, portanto, ser interpretada nesse contexto do Pai, do Filho e do Espírito Santo. John Owen assim nos exortou: “Que a leitura se siga à oração”. Se o propósito das Escrituras é o de “nos tornar sábios para a Salvação”, então sua ação comunicativa é a de nos levar a Cristo, para permanecermos nele. Como assinalou John Darr, Teófilo (a quem Lucas endereçou sua narrativa do Evangelho e os Atos dos Apóstolos) é o leitor ideal de Lucas e de Atos, pois, como indica o seu próprio nome (que significa "amigo de Deus"), ele está predisposto a receber, testemunhar e vivenciar a mensagem recebida. A leitura do evangelho torna-se, então, uma realidade que molda o caráter. Para a igreja primitiva, representava a interação da revelação do passado (a Palavra) com a revelação do presente (do Espírito Santo), de modo que o importante não era o texto em si, e sim o texto à luz do advento de Jesus Cristo.
REFERÊNCIA:
HOUSTON, James. O discípulo: o aprendizado é uma longa caminhada com o verdadeiro mestre. Brasília, DF. Palavra, 2010. p. 162-163.